Artículo publicado originalmente en Le Monde Diplomatique Brasil
Mais de 20 mil pessoas foram obrigadas a quebrar qualquer forma de isolamento e proteção própria diante do coronavírus, vivenciando uma grande degradação de suas condições de habitação e saneamento em função da remoção.
Comemorado anualmente no dia 05 de outubro, o Dia Mundial do Habitat de 2020 é marcado pelo descaso do governo brasileiro com a proteção da vida de sua população. Diversas organizações brasileiras denunciaram na ONU, ao longo do último mês, a situação dramática vivida por 6.473 famílias despejadas durante a pandemia, segundo levantamento realizado por movimentos e organizações da sociedade civil envolvidos na Campanha Despejo Zero.
Isso significa que mais de 20 mil pessoas foram obrigadas a quebrar qualquer forma de isolamento e proteção própria diante do coronavírus, vivenciando uma grande degradação de suas condições de habitação e saneamento em função da remoção. São também mais de 20 mil pessoas que precisaram buscar soluções provisórias de moradia, sendo obrigadas a colocar em risco outras pessoas que as abrigaram, como amigos e familiares.
Esse monitoramento deveria igualmente ocorrer em âmbito internacional, diante da inércia dos governos de tantos países nesse quesito. Em reunião da Campanha com representantes da ONU-Habitat e do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, o Instituto Pólis reafirmou a necessidade de que a própria ONU reative mecanismos globais de monitoramento dos despejos e remoções. O trabalho de instâncias como o Advisory Group on Forced Evictions, no início dos anos 2000, demonstrou que se trata de um fenômeno global e que, por essa razão, precisa de medidas e compromissos concretos adotados pelos países em âmbito internacional.
Se tais ações estivessem em andamento, certamente o número encontrado não seria de 20 mil pessoas afetadas, seria muito maior, tendo em vista a existência de milhares de famílias despejadas cujas informações não puderam ser acessadas pela Campanha Despejo Zero, uma iniciativa voluntária da sociedade civil brasileira. Mesmo assim, a cifra de 20.000 pessoas já é extremamente preocupante, tendo em vista ser maior, por exemplo, do que a população de 3.776 municípios brasileiros (IBGE). Despejamos, portanto, o equivalente a cidades inteiras. Removemos de suas casas o equivalente à população somada dos 17 menores municípios brasileiros.
Autoridades internacionais já se pronunciaram sobre o assunto. Em reunião promovida pelo Instituto Pólis e demais organizações envolvidas na Campanha Despejo Zero, o Relator Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada e professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), o norte americano Balakrishnan Rajagopal, declarou que, diante da situação, recomendaria em seu próximo relatório dirigido à Assembleia Geral da ONU uma moratória de despejos e remoções. Em comunicado dirigido à imprensa internacional, o Relator se diz alarmado com o aumento das remoções em nível mundial e explicitamente cita o caso do Brasil.
Em reunião com as organizações da Campanha Despejo Zero, representantes dos escritórios da agência ONU-Habitat e do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos situados no Brasil se mostraram atentos à situação. A própria Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, mencionou expressamente a onda de remoções violenta que vem acontecendo no país em seu recente pronunciamento na 45ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Infelizmente, mesmo diante de todas essas manifestações, o governo brasileirocontinua omisso em relação ao tema. São abundantes os alertas e pedidos de atuação emitidos por autoridades internacionais, havendo ainda orientações concretas fornecidas pela Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada e também pela ONU-Habitat. Há até mesmo um Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional (PL 1975/2020) que propõe a suspensão do cumprimento de toda e qualquer medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em despejos, desocupações ou remoções forçadas, durante o estado de calamidade pública reconhecido em razão da Covid-19.
O governo brasileiro dispõe, portanto, de todos os meios possíveis para realizar essa suspensão em nível nacional, sendo a adoção imediata desta medida uma questão humanitária e de saúde pública. Estamos falando da vida de 20.000 brasileiros e brasileiras já removidos, mas também falamos de prevenir que outras centenas de milhares de pessoas que hoje se encontram ameaçadas de remoção possam estar protegidas, no mínimo, durante o período de pandemia. Nunca ficou tão evidente quanto neste momento de crise sanitária o que organizações e movimentos da sociedade civil vêm dizendo há anos: o direito à moradia é expressão material do direito à vida. Não é aceitável a omissão do governo brasileiro em relação aos despejos e remoções. Ao deixar desamparadas famílias ameaçadas de despejo, o Brasil pode condená-las à morte.
Rodrigo Faria G. Iacovini é advogado, doutor em planejamento urbano e regional pela USP, coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City. Foi coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e trabalhou na Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.