1.Da Evolução dos Direitos Urbanos para o Direito à Cidade
1.1. A concepção dos direitos urbanos na Emenda Popular da Reforma Urbana
A concepção de direitos urbanos estava contida como o elemento chave no pensamento da reforma urbana, concebido no processo de redemocratização do Brasil. Em especial, estava presente no processo de Assembleia Constituinte que resultou na Constituição Brasileira de 1988, traduzido em particular no conteúdo apresentado pela histórica emenda popular de reforma urbana de 1987.
É uma concepção embasada nos direitos humanos, um dos temas centrais no pacto político que ocorreu nessa Constituinte, segundo o qual todo cidadão deve ter direito a uma condição de vida urbana digna e justiça social. Houve uma conjugação de necessidades individuais, coletivas e de interesses difusos para caracterizar o significado de vida urbana digna. Cabe ao Estado assegurar moradia, transporte público, saneamento, energia elétrica, iluminação pública, comunicações, saúde, educação, lazer e segurança. Cabe ainda assegurar, no campo dos interesses difusos, a proteção ao patrimônio ambiental e cultural e a gestão democrática das cidades.
Nessa concepção de direitos urbanos constava uma clara conexão com o cumprimento da função social da propriedade. Pretendia-se que o direito a condições de vida urbana digna condicionasse o exercício do direito de propriedade ao interesse social no uso dos imóveis urbanos. Este exercício, por sua vez, estaria subordinado ao princípio do estado de necessidade, o qual pressupõe um conflito entre titulares de interesses lícitos e legítimos em que um destes interesses pode perecer licitamente para que outro sobreviva. Isso deveria, justamente, ser aplicado nos casos de conflitos entre moradia e propriedade, em que a moradia prevaleceria sobre a propriedade em razão do estado de necessidade das pessoas que não possuem um local digno para morar.
Esse concepção de direitos urbanos foi uma referência na luta pela reforma urbana também nos processos políticos que ocorreram em vários Estados e Municípios no período de elaboração de suas Constituições Estaduais, Leis Orgânicas e dos planos diretores dos anos 90. Ela contribuiu, ainda, para a visão que passa a ser construída sobre o direito à cidade no país ao longo da elaboração do Estatuto das Cidades.
1.2. A Concepção do Direito à Cidade no Estatuto das Cidades
O período de elaboração do Estatuto das Cidades no Congresso Nacional perdurou mais de 10 anos (1989 – 2001) em razão da ação de grupos políticos conservadores. Tais grupos resistiam a viabilizar a implementação de uma política urbana voltada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade e da cidade. Por outro lado, foram fundamentais nesse mesmo período as discussões e formulações sobre as conexões entre direitos humanos, meio ambiente e sustentabilidade no âmbito das Conferências Globais das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro – 1992) e sobre Assentamentos Humanos – Habitat II (Istambul – 1996) e da Conferencia Nacional das Cidades (Brasília – Câmara dos Deputados – 1999). Além disso, as experiências de gestões municipais participativas vivenciadas em diversas cidades brasileiras por governos do campo democrático e popular foram também fundamentais para a passagem da visão de direitos urbanos para a do direito à cidade, adotada pelo Estatuto das Cidades.
A partir desse momento, este direito é qualificado como o direito a cidades sustentáveis, trazendo a dimensão da sustentabilidade como meta a ser alcançada através de uma política urbana que garanta o seu exercício. São compreendidos como seus componentes a terra urbana, moradia, saneamento ambiental, infraestrutura urbana, transporte e os serviços públicos, o trabalho e o lazer. Os elementos da condição de vida urbana digna que foram transportados da visão dos direitos urbanos é o que predomina nessa visão do direito à cidade.
A gestão democrática das cidades, prevista no inciso II do Artigo 2o do Estatuto das Cidades, também é um de seus componentes, através de uma interpretação integrada das diretrizes da política urbana definidas nessa legislação.
Quanto às pessoas consideradas como titulares do direito à cidades sustentáveis, é adotada a mesma compreensão estabelecida para o direito ao meio ambiente. Tem, portanto, como titulares as presentes e futuras gerações.
Em razão do Estatuto das Cidades ter sido pioneiro como uma legislação nacional que incorpora o direito à cidade na dimensão legal e institucional, a concepção por ele adotada foi uma fonte inspiradora para o processo de internacionalização do direito à cidade que ocorreria a partir de então. Este processo teve como espaço privilegiado os Fóruns Sociais Mundiais organizados no Brasil na cidade de Porto Alegre nos primeiros anos da década de 2000.
2. Questões para uma Visão Nacional e Internacional do Direito à Cidade
Algumas questões precisam ser aprofundadas para uma consolidação da visão do direito à cidade no Brasil e na construção de uma visão universal no processo de internacionalização desse direito. Dentre todas, destacamos as seguintes:
Qual deve ser a compreensão do termo “cidade” no âmbito do direito à cidade? Devem ser consideradas os seguintes elementos: território (urbano e rural), as tipologia de cidades, tamanho e densidade populacional, organização institucional (política e administrativo) das cidades. Por exemplo, no Brasil temos uma enorme limitação legal de compreensão de cidades. Estas são definidas como a sede de Municípios pelo artigo 3º do Decreto-Lei 311 de 1938: A sede do município tem a categoria de cidade e lhe dá o nome.
Quem são as pessoas que devem ser reconhecidos como titulares do direito à cidade considerando os seguintes aspectos: geracional, nacionalidade, diversidade de habitantes que vivem, trabalham e usufruem das cidades, período de residência ou permanência na cidade?
Qual é a categoria do direito à cidade no campo dos direitos humanos? Individual, coletivo ou difuso?
Como as pessoas podem exercer o direito à cidade e para qual finalidade?
Qual deve ser o objeto ou bem de proteção legal e jurídica do direito à cidade? Como também no Brasil, em vários países temos cidades declaradas como patrimônio histórico ou cultural. Disso resulta uma proteção legal e jurídica para preservação da memória e identidade dessas cidades.
3 A Evolução da Concepção Internacional do Direito à Cidade
3.1. A Visão da Carta Mundial do Direito à Cidade
Essas indagações têm norteado a construção da visão do direito à cidade no âmbito internacional. Nos espaços de discussão e articulação sobre as questões urbanas, como os Fóruns Sociais Mundiais, elas foram relevantes para a visão sobre esse direito incluída na Carta Mundial do Direito à Cidade. Da mesmo forma, foi importante nos últimos anos na visão da Plataforma Global do Direito à Cidade e da Nova Agenda Urbana, aprovada na Conferencia das Nações Unidas Habitat III, realizada na cidade de Quito no ano de 2016.
A Carta Mundial do Direito à Cidade define esse direito como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. Quanto à sua classificação no âmbito dos direitos humanos, é definido como um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis desfavorecidos. Por isso, este direito confere a eles a legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes.
Uma evolução positiva verificada na Carta Mundial do Direito à Cidade é reconhecer, como novos componentes, o direito a cidades sem nenhuma forma de discriminação e a cidades que preservam a memória e sua identidade cultural. Quanto à extensão do território para o exercício do direito à cidade, é compreendido o território das cidades e seu entorno rural.
Na Carta, o conceito de cidade possui duas acepções. Por seu caráter físico, a cidade é toda metrópole, urbe, vila ou povoado que esteja organizado institucionalmente como unidade local de governo de caráter municipal ou metropolitano. Inclui tanto o espaço urbano como o entorno rural ou semi-rural que forma parte de seu território. Como espaço político, a cidade é o conjunto de instituições e atores que intervêm na sua gestão. Exemplos disso seriam as autoridades governamentais, legislativas e judiciárias, as instâncias de participação social institucionalizadas, os movimentos e organizações sociais e a comunidade em geral.
Sobre a questão da titularidade, são considerados como cidadãos(ãs) todas as pessoas que habitam de forma permanente ou transitória as cidades.
3.2. A Visão da Plataforma Global do Direito à Cidade
A Plataforma Global do Direito à Cidade é uma rede internacional que agrega redes e organizações internacionais da sociedade civil e de governos locais. Coletivamente, promoveram uma mobilização e articulação durante o processo da Conferencia das Nações Unidas Habitat III para que a visão do direito à cidade fosse incluída na Nova Agenda Urbana.
Na visão da Plataforma Global, o direito à cidade tem a natureza de um direito humano coletivo/difuso conjugado com as funções sociais da cidade e da gestão democrática das cidades. Isso permite a integralidade dos direitos humanos num determinado território com base nas normas internacionais de proteção dos direitos humanos.
Sobre a titularidade, o direito à cidade é o direito de todos os habitantes, tanto da presente como das futuras gerações. Adota ainda a visão de cidadão contida já na Carta Mundial, a qual abrange tanto os habitantes permanentes como temporários.
A forma de exercer o direito à cidade é o de ocupar, usar e produzir cidades. A finalidade desse exercício é de termos cidades justas, inclusivas e sustentáveis. A cidade é definida como um bem comum, necessário para uma adequada condição de vida. Isso inclui os seguintes componentes:
a) a cidade livre de qualquer forma de discriminação
b) a cidade com cidadania inclusiva, na qual reconhece todos os habitantes, permanentes ou transitórios, como cidadãos;
c) a cidade com maior participação política;
d) a cidade que cumpre as suas funções sociais e que garante o acesso equitativo de todos ao uso, ocupação do território;
e) a cidade com espaços públicos de qualidade;
f) a cidade com igualdade de gênero;
g) a cidade com diversidade cultural;
h) a cidade com economias inclusivas;
i) a cidade como um sistema de assentamento e ecossistema comum, que respeite os vínculos e conexões entre o rural-urbano.
Por essa visão, a cidade como um bem comum é o bem que deve ter proteção legal e jurídica através do direito à cidade.
3.3. A Visão da Nova Agenda Urbana
A Nova Agenda Urbana contempla em grande parte a visão defendida pela Plataforma Global. A visão contida no paragrafo 11 da Agenda considera como titulares os habitantes das presentes e futuras gerações, sem discriminação de qualquer ordem. Assim, pode ser interpretado como o reconhecimento também dos habitantes temporários.
Com relação a extensão territorial desse direito, são incluídos todos os assentamentos humanos. Sobre a forma de exercer o direito, o documento considera o direito de habitar e produzir cidades e assentamentos humanos com a finalidade de serem justos, seguros, saudáveis, resilientes e sustentáveis.
No parágrafo 13 da Nova Agenda Urbana, são contemplados os seguintes componentes do direito à cidade: as cidades sem nenhuma forma de discriminação, com função social, com igualdade de gênero, com espaços públicos, com economia inclusiva, com proteção dos seus ecossistemas.
Essa nova visão traz um novo significado para os direitos humanos e para funções e formas de vida em nossas cidades e assentamentos humanos. Ela precisa ser consolidada e considerada como estratégica pelos países e cidades no enfrentamento das desigualdades sociais, econômicas, culturais e territoriais e dos impactos do aquecimento global e das mudanças climáticas.
4. Questão Emergente para a consolidação da visão do direito à cidade no Brasil
De todas as questões que precisam ser aprofundadas para a consolidação da visão do direito à cidade em nosso país, o ponto de partida deve ser a compreensão da cidade como um bem comum como o pilar emergente do direito à cidade. Isso trazendo outras visões e pensamentos que possam contribuir nesse sentido, como o pensamento do direito ao bem viver, oriundo de pensamentos das civilizações indígenas latinas.
No quadro – da figura anexa – conclusão do artigo.
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Artigo de Nelson Saule, Coordenador da Área do Direito à Cidade do Instituto Polis, Coordenador do Grupo de Apoio da Plataforma Global do Direito à Cidade e Coordenador de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.