Organizações da sociedade civil brasileira, reunidas em São Paulo em 31 de maio de 2016, vêm através da presente Carta se manifestar em relação ao conteúdo proposto para a Nova Agenda Urbana (NAU), a ser adotada na Terceira Conferência das Nações Unidas para Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável – Habitat III. Primeiramente, reconhecemos que a proposta apresentada pelo Rascunho Zero avança no sentido de compreender a cidade e a política habitacional de maneira integrada, seja na rede de cidades e conectadas em outras escalas de governo, ou articuladas a outras políticas e ao processo de desenvolvimento urbano como um todo.
No entanto, acreditamos que, para a construção de uma NAU efetivamente condizente com a realidade das cidades hoje, falta uma análise mais aprofundada em que medida avançamos ou não em relação aos compromissos assumidos na Conferência Habitat II, em Istambul em 1996 – de modo a explicitar o referencial de base para a construção da NAU com seus princípios estruturadores, agenda, meios de implementação e monitoramento.
A proposta de Agenda divulgada até o momento apresenta uma linguagem que tenta incorporar uma suposta neutralidade do processo de desenvolvimento urbano, o que não condiz com a realidade de exclusão, regressão e violação de direitos vivenciada pela população cotidianamente. Com isso, não reconhece nem mostra empatia pelos diversos conflitos que permeiam este processo, como os conflitos fundiários, socioambientais e de disputa política pelo espaço público, presentes em diferentes partes do mundo.
Nossa avaliação é de que, no aspecto das vulnerabilidades, o documento não aprofunda as problemáticas relacionadas às desigualdades e exclusões vividas por grupos populacionais marginalizados. No documento, a análise está centrada na pobreza urbana e no tratamento dos cidadãos vulneráveis apenas através do componente renda, deixando de avançar do ponto de vista das desigualdades socioterritoriais (acesso a serviços, bens e oportunidades). Mulheres, jovens, a população negra, idosos, minorias étnicas (como a indígena, cigana, etc.) e LGBTI’s são os públicos mais vulneráveis não somente no que tange à segregação urbana e à exclusão social, mas também à violência urbana e à segurança pública, assuntos pouco desenvolvidos da NAU. Somente a partir do reconhecimento destas desigualdades, é possível articular soluções que tratem com mais atenção as dificuldades hoje enfrentadas na vida urbana e rural por estes grupos.
Dentre os princípios, consolidados na definição da “Nossa Visão”, deveriam estar expressamente presentes: a busca da equidade, a justa distribuição dos custos e benefícios da urbanização, a função social da posse e da propriedade, dentre outros. Em uma Agenda que pretenda efetivamente mudar o paradigma de desenvolvimento urbano, o que se percebe, contudo, é uma tentativa de inclusão de diferentes e, muitas vezes, contraditórias visões.
O documento aponta, por um lado, a necessidade de se construir economias urbanas inclusivas; por outro, contraditoriamente, aponta a competitividade como uma meta a ser perseguida pelas cidades. Acreditamos que esta última visão deva ser eliminada da agenda, sendo vital o estabelecimento da solidariedade e da cooperação entre cidades e entre diferentes atores para um movimento global de transformação do desenvolvimento urbano. Da mesma forma, entendemos que a visão de produtividade das cidades, presente no documento, deve dar lugar à noção de sustentabilidade.
Embora o documento mencione o Direito à Cidade, ele assume incorretamente que esse conceito é equivalente à ideia de uma “cidade para todos”. Enquanto o conceito de “cidade para todos” surgiu apenas recentemente e se relaciona prioritariamente com a dimensão da igualdade e da não-discriminação nas cidades; o conceito de Direito à Cidade vem sendo construído ao longo de várias décadas, desde um movimento de base, e reafirma o sentido da cidade como bem comum. É um conceito muito mais amplo, portanto, do que o primeiro, ao articular as diversas dimensões das cidades e da vida urbana (espaços públicos, fundiária, habitacional, etc.), como exemplificado pelo documento final apresentado pelo Policy Unit 01. Acreditamos, assim, que a NAU deve reconhecer o Direito à Cidade como uma abordagem de direitos humanos para as cidades e como uma plataforma de ação para governos, sociedade civil, e setor privado, com vistas às cidades justas, inclusivas e sustentáveis.
Nesse sentido ainda, é importante que a NAU defina com mais clareza o papel do setor privado no processo de desenvolvimento urbano para além das parcerias publico-privadas. É importante estabelecer mecanismos de participação, controle social, gestão e transparência para sua atuação e nas relações estabelecidas com o setor público e a sociedade. São necessárias, portanto, políticas de regulação das grandes empresas atuantes no setor e também do mercado imobiliário. Também devem ser previstas políticas que consigam reverter o atual padrão excludente de desenvolvimento urbano, desconcentrar a propriedade privada e redistribuir melhor as riquezas e benefícios decorrentes do processo de produção das cidades, inclusive por meio da criação de impostos progressivos e da inversão de prioridades nos investimentos.
A NAU, do ponto de vista da questão fundiária, praticamente não aborda as questões dos assentamentos informais, da concentração da terra e da propriedade e não apresenta propostas concretas para a regulação do mercado imobiliário, pontos essenciais para a democratização do acesso à terra urbana. Para isso, seria importante o reconhecimento da função social da posse e da propriedade na Agenda e também o estabelecimento de mecanismos para a prevenção e mediação de conflitos fundiários e garantias da posse segura da terra.
A atual proposta de NAU é silente ainda em relação a alguns aspectos chave da política habitacional hoje como: o debate sobre o financiamento da produção habitacional e seu processo de financeirização; o processo de enfraquecimento de diferentes tipos de posse da terra, não fazendo a crítica necessária ao discurso hegemônico da propriedade privada individual como modelo único; a necessidade de se priorizar intervenções integradas, multidimensionais e participativas em assentamentos informais, bem como medidas de reconhecimento de direitos. Portanto, para avançar na efetivação do direito à moradia adequada e da segurança da posse, é essencial que a NAU reforce a importância de que sejam ofertadas pelas políticas públicas uma diversidade de programas e soluções habitacionais e de formas de se assegurar a posse, deixando claro que a situação habitacional não pode ser resolvida com um modelo único. É preciso, por exemplo, destacar a importância do apoio, através de subsídios governamentais, a processos de produção social do habitat, possibilitando uma oferta de qualidade, com boa localização e que fortaleça os vínculos sociais.
A concepção de espaços públicos acessíveis, seguros, culturalmente diversos, amplamente abertos à interação social, à participação política e às manifestações socioculturais, já inserida na NAU, é positiva e deveria ser melhor especificada entre os compromissos e formas de efetivação do documento. É preciso, sobretudo, superar a noção que confunde espaços públicos com bens de propriedade e geridos pelo Estado, avançando para a ideia de espaços públicos como bens comuns, inclusive com a possibilidade de gestão social e coletiva. Outro aspecto que deve estar presente na Agenda é o papel que poderá ser desempenhado pelos espaços públicos, na promoção das economias populares e solidárias, com compromissos de não discriminação dos trabalhadores informais, sejam eles nacionais ou imigrantes. No mesmo sentido, deve haver um maior aprofundamento na dimensão política e cultural na utilização dos espaços públicos, assegurando que não haja repressão ou criminalização das diversas expressões da cidadania. Outro elemento elemento ausente no texto é a destinação dos espaços públicos nas áreas urbanas e de transição urbano-rural, que devem ser destinados à preservação ambiental e a formas de agricultura urbana e sustentável.
Por fim, como medida que reforce a importância do documento, e incentive que seja colocado em prática, acreditamos ser necessária a criação de um painel de monitoramento da implementação da Agenda, que articule diversas agências e programas da ONU, bem como outros atores relevantes dos diferentes segmentos da sociedade. Nós acreditamos fortemente que todas as reivindicações e sugestões mencionadas acima são fundamentais para atingir cidades sustentáveis, inclusivas e justas nos próximos 20 anos.
ORGANIZAÇÕES: ActionAid Brasil; Instituto A Cidade Precisa de Você; Associação Nacional de Transportes Públicos; Central de Movimentos Populares; Centro de Direitos Econômicos e Sociais; Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (CENDHEC); Centro Gaspar Garcia; Confederação Nacional das Associações de Moradores; Engajamundo; Escola de Governo São Paulo; Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE); Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros; Federação Nacional dos Arquitetos; Fórum Nacional de Reforma Urbana; Frente de Luta por Moradia; Fundo Socioambiental Casa; Global Platform for the Right to the City; Grupo de Institutos Fundações e Empresas; Habitat para Humanidade Brasil; Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; Instituto Pólis; Grupo de Pesquisa Lugar Comum/FAUFBA; Movimento Nacional de Luta por Moradia; Grupo de Pesquisa Meio Ambiente Urbano da PUC/SP; Rede Interação; StreetNet; Terra de Direitos; Teto – Brasil; União de Moradia da Zona Sul; União dos Movimentos de Moradia de São Paulo; União Nacional por Moradia Popular; União por Moradia Popular do Rio de Janeiro; Women in Informal Employment: Globalizing and Organizing (WIEGO).