Artigo de: Adriana Nogueira Vieira Lima[1], Fernanda Carolina Costa[2], Sabrina Durigon Marques [3]
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a construção do Direito à Cidade, durante o Fórum Social Mundial realizado em Salvador. Para tanto, tomamos como ponto de partida, a participação do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), associação civil, que vem atuando desde de os anos 2000 na construção da ordem urbanística brasileira. Partindo do pressuposto que a luta pelo Direito à Cidade é interescalar, o IBDU buscou participar de atividades problematizando o Direito à Cidade na escala internacional, nacional e local. Acreditamos que a participação do IBDU contribuiu com a articulação de pautas voltadas ao Direito à Cidade e com o fortalecimento das experiências de lutas e resistências.
A globalização do capitalismo e o fortalecimento das corporações em diversos contextos sociais, políticos e culturais no mundo, vem promovendo o acirramento dos processos de exclusão socioespacial, atingindo sobretudo, as minorias sociais, a exemplo de mulheres, povos e comunidades tradicionais, negros e negras, pessoas com deficiência, população LGBT, população de rua. Essa atuação corporativa e mercantil sobre os territórios urbanos não prescinde da articulação com os Estados e está fortemente alicerçada em modelos de legalidade lastreados em uma visão privatizante do Direito.
Apesar de dominante, essa lógica de atuação das corporações não é hegemônica e não opera sem resistência. Nesse sentido, é possível perceber a proliferação de sujeitos coletivos de direitos, instituições sociais, redes de vizinhanças, movimentos sociais urbanos de diversas matizes que não apenas resistem a esse modelo, mas, sobretudo, apresentam diversas experiências de ação coletiva na produção da cidade, demonstrando que outro mundo é possível.
Nesse sentido, partindo do pressuposto que estratégia de conhecimento é inseparável de uma estratégia política, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, associação civil de âmbito nacional constituída por juristas, urbanistas, pesquisadores e militantes sociais, vem ao longo da sua trajetória, atuando em diversas escalas e instâncias, buscando contribuir com a efetivação do Direito à Cidade[4], por meio da construção de uma ordem jurídica urbanística brasileira, calcada em uma democracia de alta intensidade, reconhecimento dos territórios ocupados pelas minorias sociais e combate ao processo de segregação urbana, bem como com uma atuação efetiva na formulação de políticas e na busca da concretização desse direito.
A atuação do IBDU é fortalecida por meio dos processos de interação social, notadamente nos fóruns nacionais e internacionais que produzem um discurso contra hegemônico. Desta forma, buscamos eleger o Fórum Social Mundial, que aconteceu entre os dias 13 e 17 de março de 2018, em Salvador (Bahia), como um espaço político privilegiado para articulação em torno do Direito à Cidade.
A participação do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico no Fórum Social Mundial, em Salvador, seguiu o lema central “Resistir é criar, resistir é transformar”. A partir dessa provocação, os associados do IBDU que estiveram presentes no Fórum, alicerçados no pensamento de Roberto Lyra Filho, que nos chama atenção que o direito é desordenador, porque se materializa, por meio de uma “incessante des-ordenação das estruturas sociais, transformando a ‘engenharia’ do status quo”. Assim, foram propostas e realizadas atividades que buscaram problematizar o Direito à Cidade, em diversas escalas (internacional, nacional e local), mas sem perder de vista que esses espaços possuem zonas de contatos e se retroalimentam.
Desse modo, o IBDU realizou três atividades durante o Fórum. A primeira atividade teve o objetivo de promover um debate sobre a Lei Federal nº 13.465/2017, que estabeleceu uma nova ordem jurídica aos processos de regularização fundiária. Essa atividade, que contou com a presença de gestores públicos, estudantes, professores proporcionou um espaço importante de debate entre os participantes, sobretudo permitiu descortinar os propósitos da nova lei, dando visibilidade aos aspectos relacionados aos impactos negativos desse novo diploma legal sobre o território , sobretudo na real possibilidade de privatização em larga escala dos bens da união, a flexibilização exacerbada para regularização dos condomínios fechados e outras formas de ocupação promovidas por pessoas de alta renda, inclusive em áreas com restrições ambientais, o desrespeito às normas ambientais e ao poder dos municípios em regular o seu território, além dos limites impostos pela nova normativa para regularização fundiária de territórios ocupados por minorias sociais. Dando seguimento, e buscando enfatizar a produção internacional do Direito à Cidade, buscamos, em parceria com a Global Platform for the Right to the City promover uma oficina de capacitação sobre avanços na implantação do direito à cidade na escala global. A partir dos eixos temáticos que compõem o conteúdo do Direito à Cidade, passamos a debater seu conteúdo e desafios no Brasil e no mundo.
A participação do IBDU no Fórum Mundial culminou com uma aula pública no coração do centro histórico realizada em parceria com Articulação do Centro Antigo de Salvador, que buscou problematizar a democratização do acesso à cidade e a garantia do direito à moradia. A abertura da atividade coube ao Grupo Teatro do Oprimido do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB), que a partir do lema “Juventude que ousa lutar constrói poder popular”, abordou temas relativos ao Direito à Cidade com recorte para a juventude negra. Falas emocionadas ecoaram, em homenagem a vereadora Marielle Franco, mulher negra e lésbica, executada na Cidade do Rio de Janeiro no período de realização do Fórum, cuja militância e atuação política denunciava e buscava se contrapor a negação do direito de minorias e a segregação sócio espacial da população de menor renda. Marielle simbolizava a luta abordada pelo grupo teatral, ela era o eco das vozes negras e de baixa renda, tão sub representadas na política. A morte de Marielle fez com que essas vozes se reproduzissem em muitos espaços de resistência, como o Pelourinho, onde acontecia a aula pública. Esse espaço fez emergir questões da escala local, sobretudo em relação ao contexto de Salvador, evidenciando os mecanismos de repressão e silenciamento dos sujeitos que lutam e resistem no centro das cidades brasileiras.
As três atividades propostas pelo IBDU, evidenciaram que múltiplas formas de violações do Direito à Cidade são operadas nas escalas local, nacional e internacional, apontando para uma tendência ao aumento dos processos de exclusão, restrição ou interdição das esferas de participação social e acirramento da repressão aos movimentos sociais. Por outro lado, o espaço do Fórum Social Mundial também apresentou uma contra face a este cenário, permitindo dar visibilidade a diversas formas de residência e proliferação disseminada de espaços comuns construídos cotidianamente por diversos movimentos sociais.
Podemos afirmar que a 13ª Edição do Fórum Social Mundial, em Salvador representou um importante locus de convergências em torno do Direito à Cidade. As articulações feitas com diversos sujeitos coletivos de direito que partilharam conosco essa rica experiência deixam ainda mais claro que a construção do Direito à Cidade deve se dar nas ruas, por meio da ação dos movimentos sociais.
Essa experiência fortalece o IBDU, fazendo reafirmar os seus propósitos constante nos seus estatutos, em especial a defesa incondicional do Direito à Cidade, a ordem urbanística, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e os direitos culturais – materiais e imateriais por meio do aprofundamento e da divulgação do conhecimento sobre temas relevantes das realidades local, nacional e internacional na luta pela efetivação do Direito à Cidade, com enfoque nas dimensões de raça, gênero, orientação sexual, juventude e solidariedade inter geracional.
[1] Doutora em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Coordenadora Nordeste do IBDU professora de Direito Urbanístico da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
[2] Mestra em Desenvolvimento Urbano e Regional pelo MDU/UFPE, especialista em Planejamento e Uso do Solo Urbano pelo IPPUR/UFPE e vice-diretora do IBDU.
[3] Mestra em Direito Urbanístico pela PUC-SP, professora universitária de Direito e Coordenadora Centro Oeste do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU)
[4] O direito à cidade é uma garantia que todo brasileiro tem de usufruir da estrutura e dos espaços públicos de sua cidade, com igualdade de utilização.